Auschwitz-Birkenau, e o Festival do Grande Dragão
Birkenau |
Vesti
a primeira roupa que estava na minha frente e a adrenalina subiu instantaneamente.
As meninas já estavam acordadas e me ajudaram pedindo um táxi, enquanto eu
comia um pote de iogurte com ferocidade. Nesse processo quase esqueci meu
celular em casa.
O
taxista não falava inglês, o que não é difícil de acontecer no leste europeu,
pois é mais comum apenas os restaurantes e hotéis com guias poliglotas. A
grande maioria é bem orgulhosa de sua língua local e não quer falar outro
idioma. Tive então que mostrar no mapa o Market Square para o taxista poder me
levar, e fui acompanhando o trajeto pelo Google Maps pra ter certeza que ele
entendeu corretamente.
Descendo
do táxi eu corri até a agência de turismo e consegui chegar a tempo. Já havia
algum pessoal lá da nossa excursão, então aproveitei para respirar e tomar uma
água. Nessa hora fiz amizade com o David, que também estava fazendo
Couchsurfing em Cracóvia. O
grupo todo era muito legal. Havia pessoas de todas as partes do mundo, mas
todos se surpreendiam quando eu dizia que era do Brasil. Não sei se eles têm um
estereótipo de brasileiro na cabeça, ou se são poucos brasileiros que vão para
Cracóvia. A nossa guia estava bem agitada, diria até um pouco perdida, e não
falava inglês muito bem.
Durante
a viagem que duraria aproximadamente uma hora, ficamos assistindo a um
documentário feito pelo cinegrafista soviético Alexander Vorontzov no momento
da liberação do campo de concentração pelo exército vermelho. Estou adicionando
o link abaixo, em inglês. O vídeo contém imagens fortes sobre a situação
deplorável em que os prisioneiros se encontravam, e sobre as condições de vida
do lugar. É um documentário triste, porém muito completo que de certa forma nos
preparou para o que estava por vir.
Uma
informação útil: é possível chegar a Auschwitz de transporte público e se
juntar a uma excursão com guia sem precisar pagar todo o pacote. Eu por um lado
gostei da excursão, pois não só o nosso transporte foi confortável, como fiz
amigos, e o vídeo foi muito instrutivo. Mais detalhes para essa visita, eu
recomendo olhar o site do museu.
Auschwitz
Arbeit macht frei |
Conforme
eu andava, queria tirar foto de tudo, de todas as perspectivas diferentes. Ao
final da página está a galeria de fotos (com as principais), que será útil para
acompanhar visualmente essa experiência. Curioso foi saber que pouco tempo
depois que eu fiz essa visita, o Papa Francisco também a fez, passando pelos
mesmos pontos.
A
visita a Auschwitz começa com o grande portão de ferro com as inscrições “Arbeit
macht frei” (O trabalho liberta). Essa frase era para acalmar os judeus, que
eram levados a acreditar que se trabalhassem arduamente estariam livres. O
campo todo era uma farsa e essa mentira me causou repulsa logo de início.
Naquela época demorava-se muito tempo para as notícias se espalharem de que as
pessoas que estavam sendo levadas para os campos de concentração estavam na
verdade morrendo. Portanto muitas delas levavam seus pertences mais preciosos.
No
museu alguns blocos foram mantidos no seu estado original, e outros adaptados
em forma de galeria para conversar a história. O ponto todo desse museu era
exatamente o de não deixar que essa história fosse esquecida, e que a
humanidade aprendesse com seus erros. No total em Auschwitz foram mortos 1,3
milhões de pessoas, sendo elas 1,1 milhão de judeus.
Logo
na primeira parte da galeria havia um monumento em forma de jarro com as cinzas
das pessoas que foram mortas ali. Paramos um momento para olhar as fotos
históricas e conhecer um pouco da história do lugar e da política nazista. Era
curioso como mesmo em tempos de guerra, as pessoas tinham o cuidado de tirar
fotos e gravar vídeos de situações mais inusitadas.
Numa
outra sala, estavam expostos diferentes ferramentas utilizadas, documentos e
plantas sobre a construção do campo, câmera de gás e crematório. O que mais me
chamou nessa sala foi uma amostra de cristais de Zyklon-B, usados como armas
letais nas câmeras de gás e fornecidos na época pela indústria farmacêutica
Bayer.
Todos
os pertences que os prisioneiros levavam eram retirados deles e colocados num
depósito apelidado de “Canadá”, por ser a terra dos sonhos, e estar distante.
Então havia galerias de utensílios de cozinha, malas, sapatos, jóias, e os mais
variados pertences que se pode imaginar. Quando agrupados, dá pra se ter uma
noção da proporção de pessoas que passaram por ali. Em alguns pontos chega a
ser assustador, como se aquela fosse a única memória viva de muitas daquelas
pessoas. Dessas galerias a que mais me causou uma mistura de desespero com
tristeza foi uma sala enorme cheia de cabelos que eram retirados das vítimas
para serem usados como matéria-prima da indústria têxtil. Essa sala não podia
ser fotografada.
Os
dormitórios e sanitários também eram em condições desumanas, e sem nenhuma
higiene. Uma pessoa forte conseguia viver em média 21 dias naquele lugar, mais
do que isso se tornava muito difícil. Mas havia, é claro, um prédio chamado
hospital naquele lugar. Porém as pessoas apenas iam lá para morrer mesmo.
Zyklon-B |
Também
achei bela a história do padre Maximilian Kolbe. Dizem que o padre sempre foi
muito prestativo, e se doava ao máximo aos outros. Quando um prisioneiro tentou
escapar e foi sentenciado, ele se ofereceu para morrer no lugar de um homem
desconhecido. A cela em que o padre morreu, localizada numa parte subterrânea e
escura, hoje é uma capela muito visitada e admirada por fiéis. O padre
posteriormente foi canonizado pelo Papa João Paulo II, sendo considerado pelo
mesmo como “O santo do nosso século difícil”.
Em
seguida fomos para Auschwitz II, Birkenau, que era o maior campo de
concentração. Ao contrário da primeira parte, que fora transformada num museu,
aqui o antigo campo estava quase que intacto, e a visita era em sua maioria ao
ar livre. Auschwitz fora escolhida por ser um local de fácil localização
ferroviária para todos os países que estavam sob o domínio Nazista. Em Birkenau
os trilhos de trem são enormes e chamam a atenção no portão de entrada. Por ali
chegavam trens de toda a Europa trazendo centenas ou até milhares de
prisioneiros.
Aqui
vimos os locais onde foram tirados fotos clássicas que representam o que um dia
fora aquele local, e principalmente o grande monumento da paz escrito nos
idiomas de todos os prisioneiros que já passaram ali. Esse monumento teve um
significado importante para mim, pois o meu sentimento de estar fazendo aquela
visita estava cravado naquelas pedras de forma bem explicita:
“Para
sempre deixar este lugar ser um grito de desespero e um aviso para a
humanidade, onde os nazistas assassinaram cerca de um milhão e meio de homens,
mulheres e crianças, principalmente judeus de vários países da Europa.
Auschwitz-Birkenau 1940-1945”
Isso
era Auschwitz. Não era um show de horrores, ou uma atração turística. Era um
lugar para ser lembrado, e para que nunca mais se repetisse. Mas será que as
pessoas estavam capturando essa mensagem? Será que no mundo afora isso não se
repete? Tenho minhas opiniões sobre isso.
Muito
do que vimos em Birkenau estava também nas exposições do museu, mas com a
diferença de que aqui vimos numa proporção real dos grandes barracões: as
péssimas condições de higiene, sanitárias, tudo estava aqui numa grande
proporção. E numa tentativa de apagar evidências dos seus crimes, os nazistas
destruíram os crematórios, o que ainda hoje (apesar de tantas evidências) ainda
faz alguns sensacionalistas contestarem a existência do holocausto.
Ao
final dessa visita peguei uma pedra do lugar e a coloquei no bolso. Era bem
provável que aquela pedra não estivesse lá por todo esse tempo, mas ao menos
seria algo que eu poderia ter e fazer outras pessoas também sentirem o que
significava estar lá. De que não importasse o quanto nossos problemas do dia a
dia fossem ruins, aquele lugar ainda existira e nossos problemas do dia a dia
seriam completamente insignificantes comparados a aquilo...
Cracóvia
Chegando
novamente no Old Square, eu e o David fomos ver algumas outras atrações. Havia
uma exposição de artesanato e teatro oriental, mas que não nos interessou
muito. Pelas resenhas do TripAdvisor ficamos empolgados em ver o Lost Souls
Alley, um espécie de jogo de terror que envolve lógica para escapar de um
labirinto mal assombrado. No entanto o local não tinha horários disponíveis, e
perdemos a oportunidade. Depois fui saber que esses jogos são bem populares, e
tem em muitas cidades, inclusive no Brasil.
Birkenau |
Nesta
noite haveria um evento chamado Noite das Sinagogas, onde as mesmas abririam
suas portas para visitação, e também haveria alguns concertos. Parecia ser um
evento interessante, mas eu também fui convidado pelo Konrad para ir a Parada
do Grande Dragão (Smokov Parade). Em se tratando de meu anfitrião morar na
cidade, decidi ir com ele.
Cheguei
ao apartamento e as meninas também já estavam lá. Fizemos um mutirão para
organizar a casa e me arrumei para sair. Haveria também uma festa do pijama
depois da Parada, então todos saíram com seus pijamas improvisados.
Caminhamos
então até a borda do rio Vltava, que estava cheio de pessoas. O show já havia
começado, mas ainda era encantador. Havia luzes imitando o vôo de um dragão,
balões sobrevoando o rio, e uma grande variedade de fogos coloridos e
encantadores. Minha alma sentiu-se totalmente renovada, e eu sorri, pensando em
voz alta: "Depois de Auschwitz era isso que eu precisava"!
O
divertido foi que entre os três eles conversavam em Polonês, e ocasionalmente
Konrad traduzia para o inglês para mim. Nesse clima eu diverti aprendendo
algumas palavras Polonesas muito úteis como cerveja (piva) e a brindar (na
sdrovia). O mais legal é que mesmo sem entender todas as palavras eu conseguia
ter uma ideia do que estavam falando e interagia na medida do possível. Não é
nem preciso mencionar que tiramos uma onda sobre meu desespero pela manhã.
Esqueci-me
de mencionar que estávamos bebendo cerveja, certo? Pois bem, não demorou muito para
a polícia aparecer. Em Cracóvia é proibido beber em local público. O policial
nos deu um sermão, e aplicou uma multa. Mas a coisa que mais me deixou perplexo
foi que enquanto ele falava sobre os males do álcool, ele ofereceu um cigarro a
Konrad. Eles ficaram fumando e conversando. Vai entender a Polônia né?
Muro de Execução |
Mas
não ficamos muito tempo ali e fomos para uma praça terminar nossa bebida. Ali
conversamos de tudo um pouco, e demos boas risadas. Eu fiquei um pouco
desacreditado de ver que os poloneses estavam misturando vodka com sprite. Mas
tirávamos onda de tudo isso, e tivemos uma ótima noite.
Difícil
de acreditar que num mesmo dia seria possível ter sentimentos tão distintos. A
começar pelo desespero pela manhã. No outro instante eu estava em Auschwitz me
sensibilizando com a história do lugar, e por último estava feliz em ver lindos
fogos de artifício, dando boas risadas com os amigos. Creio que neste dia vivi
em dois mundos completamente diferentes, algo como um dia que parece que durou
dois, mas que na sua complexidade de emoções ímpares se completam numa coisa
só. Como uma representação micro da nossa própria vida... Um dia intenso para
ser vivido por completo.
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Cara, nem sei o que falar, só consigo fazer um paralelo com o pensamento de Theodor Adorno e como Auschwitz é realmente este símbolo, esta marca indelével da crueldade e barbárie humana... E, quando você diz em seu texto:
ResponderExcluir"Isso era Auschwitz. Não era um show de horrores, ou uma atração turística. Era um lugar para ser lembrado, e para que nunca mais se repetisse. Mas será que as pessoas estavam capturando essa mensagem? Será que no mundo afora isso não se repete? "
é impossível não refletirmos as condições em que se encontra nossa sociedade; os campos de refugiados na África, as pessoas "esquecidas" por Deus e sem auxílio do governo - aqui mesmo no Brasil - os desesperados que dia após dia buscam sair da Síria... e isto só para citarmos alguns exemplos de novos sistemas de barbáries as quais nossa sociedade perpetua a cada instante e nem nos damos conta!
Enfim, há tanta reflexão a se fazer, a tanto a se pensar a partir de Auschwitz e no nosso mundo atual, que, quando nos propomos a tal empreita, é difícil não se questionar - e por vezes - se desesperar com a nossa (des)humanidade...
Murilo, foi exatamente pensando nisso que fiz essa reflexão... seu comentário foi tão bom que até completa o texto! As pessoas muitas vezes tendem a pensar que tudo isso está no passado, quando está acontecendo o tempo todo como você disse. Um exemplo bem prático é que já morreram mais pessoas tentando atravessar o muro da fronteira dos USA, do que tentando atravessar o Muro de Berlim. OK que são contextos políticos e épocas diferentes, mas assuntos como esse não tem a devida atenção.
ResponderExcluirAo final quero voltar em alguns tópicos como o Nazismo, o Muro, e até Auschwitz e fazer um post mais filosófico...